Saturday, May 06, 2006

Um caso edificante

Artigo publicado no dia 2 de Maio no jornal "Público" pelo jornalista José Vítor Malheiros, cuja leitura se aconselha


Um caso edificante

A voz da minha colega da secção de pessoal que sai do telefone mostra algum constrangimento. Acaba de receber um ofício do tribunal, informa-me, ordenando uma penhora sobre o meu ordenado para cobrança de uma dívida não paga, pela qual acabo de ser condenado em julgamento.

Trata-se obviamente de um engano. Não fui condenado em nenhum tribunal e não tenho dívidas a não ser os meus empréstimos ao banco. A minha consciência está tranquilíssima quando subo para ver o ofício.

À cabeça do documento vem o nome do meu suposto credor: uma loja de electrodomésticos onde, de facto, fiz uma compra há doze anos, que paguei com uma série de cheques pré-datados, a forma de prestações corrente na altura.

É verdade que tinha havido algum problema, porque, mais de um ano após a compra, recebi uma carta de um escritório de advogados intimando-me a pagar uma mensalidade, aparentemente em falta. Respondi aos advogados dizendo que pensava estar tudo pago mas dispondo-me a pagar caso existisse alguma dívida e pedi dados: a loja perdeu algum dos cheques? Houve algum cheque não pago pelo banco? Envio a carta, não recebo resposta e acabo por varrer o caso da memória.

Agora, doze anos depois, aparece esta penhora. Contacto com o meu advogado a quem peço para deslindar a história e a quem transmito a minha vontade de processar a loja, o Estado e os tribunais para repor a justiça. Depois da surpresa inicial a minha reacção é de fúria: então um cidadão pode ser processado, levado a tribunal e condenado sem ser informado de nada? Sem ter possibilidade de se defender de uma acusação sem fundamento? É isto o Estado de direito?

A averiguação é breve: eu terei sido “devidamente” notificado pelo tribunal do processo mas acontece que … mudei de casa. E foi tudo enviado para a morada antiga.

Mas não é proibido mudar de casa! Como é possível que não me tenham localizado, se actualizei imediatamente todos os meus documentos? É que a polícia que faz estas intimações, quando não encontra o destinatário em casa, pergunta aos vizinhos se sabem onde ele está … e fica-se por aí.

E o sujeito pode acabar por ser julgado sem saber. Falo com o tribunal e a PSP, que confirmam o procedimento.

E não perguntam a morada às Finanças, que tudo sabem? À Segurança Social? À DGV? Ao Arquivo de Identificação? Não consultam a lista telefónica? “Não. Costumamos perguntar aos vizinhos.”

“E como é que conseguiram notificar-me da penhora mas não me conseguiram notificar de que ia ser julgado? Por que é que não me contactaram para o meu emprego?” “As penhoras vão para a entidade patronal, mas as notificações não vão.”

Posso fazer um processo ao Estado, mas as probabilidades de êxito são remotas, pois é possível que a polícia e tribunais tenham “cumprido os procedimentos”. E não se pode fazer um processo ao Estado e aos tribunais por estupidez? Acabo por decidir escrever esta crónica para ilustração alheira.

Morais da história (há várias):

- A primeira é que o leitor pode ter sido julgado e condenado por homicídio na semana passada sem que o brioso sistema judicial se tenha dado ao trabalho de o informar.

- A segunda é que todos os crimes prescrevem, incluindo casos de homicídio… menos os nossos.

- A terceira é que o Estado não olha a gastos (policiais, notificações, documentação, advogados, julgamento) mesmo que se trate de resolver um problema inexistente – no caso vertente, uma dívida que, a existir, o devedor se dispunha a pagar imediatamente.

- A quarta é que a reforma do Estado e dos tribunais nem sempre exige grandes meios mas necessita de algo que pode não estar disponível nas estruturas a reformar: um mínimo de inteligência e de sentido cívico.

1 Comments:

Blogger Paulo said...

Sem mais.........................

8:39 AM  

Post a Comment

<< Home