Unidade de missão para a reforma penal (parte 4)
1. Afirmar que não existe uma Investigação mas sim concretas investigações a realizar em concretos processos, pode, à partida, parecer uma daquelas verdades à Senhor de la Palice.
Não sei se isso é ou não uma evidência – não tenho a pretensão de ser o portador da Verdade, muito menos de Toda a Verdade - mas estou convicto que, pelo menos, é uma postura mental indispensável a todos os que, fazendo parte de alguma das estruturas organizativas que têm como profissão proceder a esses actos de investigação, quiserem manter uma postura democrática no exercício dos poderes a que conseguiram aceder.
E não estou seguro se toda a gente assume essa postura (pelo contrário, aliás); apesar de em Portugal, lamentavelmente, ainda se confundir muito essas duas situações (e 32 anos já é muito tempo, seria de esperar que essas dúvidas já se tivessem dissipado), exercer poderes de autoridade não é o mesmo que ser autoritário – sendo certo que o inverso também é verdadeiro: ser autoritário não é condição necessária para exercer poderes de autoridade.
Para além disso, o que é mais importante, é uma vacina para algo que é terrível – o julgamento por convicção, independentemente das provas ou indícios que possam existir; os que não entendem que cada caso é um caso, único e distinto de todos o demais, passam ou correm o sério risco de passar a julgar, mesmo quando deviam estar a investigar (a apurar) os factos, arquétipos e não pessoas e o que é pior, deixam de ir à procura do que realmente aconteceu para procurar apenas (ou em alguns casos patológico, criar) eventos/fundamentos que corroborem o cenário que, por uma razão ou outra, previamente conceberam como sendo a realidade.
E era aqui que eu queria chegar (perdoem-me tão grande rodeio), porque o debate sobre o segredo de justiça também tem a ver com isto.
2. Num qualquer dado processo, mesmo num flagrante delito, à partida, existe apenas a notícia do facto (notícia da infracção).
Ignorando por momentos o papel do Advogado de Defesa ou o da vítima, cuja função é outra (e essa função é defender os interesses do seu Constituinte – e constituinte não é o mesmo que cliente – estando os mesmas apenas vinculados a certos deveres e limites éticos que não podem, ou não devem, quebrar ou ultrapassar), cabe aos órgãos de polícia criminal recolher os elementos de prova disponíveis por forma a identificar a(s) vítima(s), a descobrir qual o exacto crime (ou crimes) praticado(s) e como o foi(foram), quem o(s) praticou e os motivos que determinaram essa conduta.
Para fazer isso, é inegável que importa esboçar uma série de hipóteses – todas as que a imaginação do investigador lhe permitirem conceber a partir dos indícios existentes.
Mas é indispensável que não sejam mais do que isso, meras hipóteses a ser confirmadas ou infirmadas com o que vier a ser apurado/adquirido com o desenvolvimento da investigação; como soi dizer-se, há que manter um espírito aberto e não cristalizar “certezas” antes de tempo (desde Leibnitz, ainda no século XVIII, que sabemos que todas as nossas certezas são meramente probabilísticas e não absolutas - liguem os motores de busca se por acaso nunca tiverem ouvido falar deste famoso matemático e filósofo alemão, ou vice versa, porque aqui a ordem é mesmo arbitrária; vão ver que a vida dele dava uma telenovela de grande audiência, melhor do que muitos desses ditos reality shows que de realidade nada têm).
Como é natural, os primeiros indícios – excepto nos casos de flagrante delito – são fracos e, às vezes, até contraditórios; por isso, todas as pistas devem ser explorados e todos os suspeitos devem ser investigados (ninguém, repito, ninguém está acima de toda a suspeita), sendo certo que um suspeito não é o agente do crime e não pode ser tratado como tal. Aliás, nem sequer o indiciado ou até o acusado o são – o condenado é-o na exacta medida em que, através do devido processo (due process of law) se criou suficiente convicção, ou dito de outro modo, uma certeza para além de qualquer dúvida razoável, de que foi essa pessoa que praticou a infracção, delito ou crime).
Ora, para que uma investigação possa desenvolver-se com profundidade – chame-se mal necessário ou outra coisa qualquer – é inevitável que alguns direitos das pessoas, dos cidadãos, sejam violados (a palavra é esta e não vale a pena usar sofismas ou, passe o vernáculo, paninhos quentes), nomeadamente, a sua liberdade e a sua privacidade
Mas este atropelo desses direitos – aqui está outra palavra que custa a dizer e a ouvir – só é legítimo se se limitar ao mínimo indispensável e só é tolerável se for secreto para terceiros.
Porque, como diz a sabedoria popular, as aparências iludem e nem tudo o que luz é ouro (e uma vez mais repito, a sabedoria popular é um saber estatístico que resulta da acumulação da experiência de gerações e gerações de seres humanos, alguns desses ditados são milenares, e como tal tem que ser respeitada – atenção, respeito não é obediência cega, mas só um idiota chapado se atreve a ignorá-la; pois não argumentamos nós, ou muitos de nós, quase todos os dias, com os resultados das sondagens e dos estudos de opinião?). Ou seja, os indícios podem ser realmente meras aparências ou coincidências e a pessoa em causa nada ter a ver com o delito praticado – ser um inocente. E nem sequer estou a ter em conta as fabricações, ciladas, embustes ou, deixem-me ser um pouco irónico, as cabalas, que, tal como as bruxas, que as há, há.
Todavia, a partir do momento em que essas intrusões excedem o que é necessário, tornam-se abusos, tornam-se crimes. E o mesmo acontece com a violação do segredo.
É assim que se passa nas Sociedades Civilizadas e é assim que se devia passar em todo o Planeta – não tenho medo que digam que tenho a mania que a chamada sociedade ocidental é superior às demais; para mim é mesmo superior e é bom que nesta Aldeia Global estimemos e nos orgulhemos desses ideais e princípios que nos custaram gerações inteiras de sangue suor e lágrimas e que estão corporizados no designado Estado Social de Direito e, acima de tudo, é imprescindível que, contra ventos, modas e marés, lutemos por eles aqui na nossa própria casa e no Mundo.
3. Como resulta do que venho expondo, para mim, segredo de justiça e presunção de inocência são conceitos completamente interligados, fazendo parte do núcleo duro dos elementos estruturantes da Comunidade.
Quem investiga, persegue, acusa e julga criminosos tem que ter alguma superioridade ética e moral sobre eles – tem que usar de algo que eles não têm, lealdade e lanheza de carácter e de comportamentos. Nos actos e não apenas nas palavras. Em suma, tem que ter princípios e agir em conformidade com eles.
Como já uma vez escrevi, o Código de Processo Penal e o sistema judiciário não podem ser a corporização do princípio que sustenta que para malandro, malandro e meio.
E estejam seguros que, ao contrário do que afirmam os securitários, uma sociedade civilizada não fica refém nem está indefesa perante o crime organizado, de que o terrorismo é apenas mais uma faceta – os traficantes de seres humanos e os que ganham com o tráfico de substâncias estupefacientes ou de armas são tão perversos, perigosos e nocivos como os bombistas suicidas e aqueles que os armam, apenas os efeitos dos seus crimes são menos visíveis. Ou, se calhar, apenas menos espectaculares.
O que nós não podemos é ser indiferentes ao que se passa à nossa volta, desinteressados e desatentos face aos outros membros da Comunidade e aos seus/nossos problemas e fechados na nossa vidinha e nas nossas coisinhas … em resumo, não podemos ser passivos, abúlicos, acríticos e amorfos, e ao invés temos que ser cidadãos inteiros, cuidadosos, atentos e interessados. E, infelizmente, também preocupados.
4. Mas uma outra deslealdade e perversidade está intrinsecamente ligada à violação do segredo de justiça. No Código de Processo Penal aprovado pelo Decreto-Lei n.º 16489, de 15 de Fevereiro de 1929, isto é, aprovado depois do Golpe de Estado de 28 de Maio de 1226 que deu início à construção do Estado Novo, a confissão desacompanhada de outros meios de prova era, mais não seja teoricamente, inaceitável.
Não sendo a mera confissão dos factos suficiente para obter a condenação do acusado, havia que procurar outros elementos de prova, em suma, havia que trabalhar (por isso as escutas eram usadas para procurar os flagrantes delitos – os casos em que, passe o plebeísmo, os agentes do crime são apanhados com a boca na botija).
As coisas mudaram muito – e algumas dessas mudanças vieram do mundo anglo-saxónico, particularmente dos Estados Unidos da América (que, com o seu natural pragmatismo e confrontados com a impossibilidade física de julgar todos aqueles que estavam acusados da prática de crimes, inventaram o plea bargaining, em que até a pena concreta a aplicar pode ser negociada).
Agora, como nunca dantes, é essencial levar o potencial agente do crime a confessar – já não tanto, como magistralmente exposto no magnífico romance de Fedor (ou Fyodor) Dostoievski “Crime e Castigo”, com o objectivo da redenção do delinquente, mas sim para, como se de uma vulgar canalização se tratasse, desentupir o sistema.
Não que o desentupimento de canos não tenha méritos – é óbvio que sim, mas ainda não encontrei nenhum romance, muito menos um com a beleza dos de Dostoievski, que tratasse desses assuntos. Falha minha, de certeza.
E, por isso, vale tudo para obter uma confissão, até mentir.
Ou explorar os efeitos da exposição de um suspeito nos meios de comunicação social, nomeadamente se ele estiver a ser detido, algemado e humilhado em público, preferencialmente em frente dos seus familiares e amigos, mesmo quando nunca antes havia sido convocado para depor ou se havia recusado a fazê-lo. É limpinho, diria o outro – outro que não eu. Ás vezes, a simples ameaça é suficiente. Para mim, isso tem um nome muito feio – chama-se, pura e simplesmente, tortura.
Habitualmente, a este tipo de condutas está também associada a ameaça da sujeição da pessoa em causa a prisão preventiva (que será acompanhada com campanhas de novas cirúrgicas violações do segredo de justiça que têm como efeito, seja o mesmo querido ou não, a destruição pública do carácter e da credibilidade do denunciado).
Estes comportamentos estão devidamente teorizados e constituem rotina em muitos países – segundo algumas associações de direitos cívicos, isso passa-se nos EUA, tendo esses métodos sido usados na chamada “Operação Mãos Limpas” em Itália (mas, quem sabe, se não estou, eu próprio, a colaborar numa qualquer mistificação ao reproduzir tais acusações); que cada um tire as suas conclusões.
Em todo o caso, tais atitudes são também, e no mínimo, uma ilegítima e monstruosa forma de pressão sobre os próprios Juízes, sendo para mim insuportável que os próprios membros da Corporação a que pertenço não sejam os primeiros a reconhecer a situação e, como é nossa obrigação, a denunciá-la e a combatê-la. Eu faço-o e continuarei a fazê-lo, até porque, para mim, existem indícios sérios que tais tácticas poderão estar a ser usadas para obter na praça pública condenações que não conseguem ser alcançadas nos julgamentos realizados nas salas de audiência dos Tribunais.
O que é verdadeiramente monstruoso e repugnante, por melhores que sejam e sejam eles quais forem, os objectivos sociais que possam ser alcançados com tais actos.
O mais puro dos fins fica irremediavelmente contaminado se for iníquo o meio usado para o alcançar. Com isso, o perseguidor torna-se igual ao infractor perseguido.
5. Mas e então, será que para os intervenientes no processo que não as polícias e o Ministério Público (segredo de justiça interno) não deverão existir regras próprias distintas daquelas que valem para os terceiros (segredo de justiça externo) ?
Naturalmente, as regras terão que ser distintas, mas, em minha opinião abolir totalmente o segredo de justiça será o maior favor que poderemos fazer a esses prevaricadores – verdadeiros criminosos que atentam contra a subsistência do Estado de Direito. Desse modo estaremos a legalizar/legitimar esses atentados à dignidade da pessoa humana (e à solidez do Estado de Direito), que deixariam de constituir, como actualmente o são, actos ilícitos. E, passando a ser actos legais, a consequência iria ser o agravamento dos males que tanto denunciamos.
Para usar a gíria futebolística, seria beneficiar o infractor – verdadeiramente, entregar o ouro ao bandido.
E existem soluções que em nada prejudicam a eficácia – a necessária eficácia – da investigação.
Mas isso é matéria da reforma do Código de Processo Penal. A seu tempo, escreverei (novamente) sobre isso.
Por agora, pretendi, tão só, reafirmar princípios. No próximo texto, se tiverem paciência para me ler, voltarei às concretas propostas da Unidade de Missão, mais exactamente, as que respeitam às várias violações da liberdade, da autodeterminação sexual de menores, da integridade física e da saúde (e outras formas de abuso, violência ou maus tratos) das pessoas físicas.
Não sei se isso é ou não uma evidência – não tenho a pretensão de ser o portador da Verdade, muito menos de Toda a Verdade - mas estou convicto que, pelo menos, é uma postura mental indispensável a todos os que, fazendo parte de alguma das estruturas organizativas que têm como profissão proceder a esses actos de investigação, quiserem manter uma postura democrática no exercício dos poderes a que conseguiram aceder.
E não estou seguro se toda a gente assume essa postura (pelo contrário, aliás); apesar de em Portugal, lamentavelmente, ainda se confundir muito essas duas situações (e 32 anos já é muito tempo, seria de esperar que essas dúvidas já se tivessem dissipado), exercer poderes de autoridade não é o mesmo que ser autoritário – sendo certo que o inverso também é verdadeiro: ser autoritário não é condição necessária para exercer poderes de autoridade.
Para além disso, o que é mais importante, é uma vacina para algo que é terrível – o julgamento por convicção, independentemente das provas ou indícios que possam existir; os que não entendem que cada caso é um caso, único e distinto de todos o demais, passam ou correm o sério risco de passar a julgar, mesmo quando deviam estar a investigar (a apurar) os factos, arquétipos e não pessoas e o que é pior, deixam de ir à procura do que realmente aconteceu para procurar apenas (ou em alguns casos patológico, criar) eventos/fundamentos que corroborem o cenário que, por uma razão ou outra, previamente conceberam como sendo a realidade.
E era aqui que eu queria chegar (perdoem-me tão grande rodeio), porque o debate sobre o segredo de justiça também tem a ver com isto.
2. Num qualquer dado processo, mesmo num flagrante delito, à partida, existe apenas a notícia do facto (notícia da infracção).
Ignorando por momentos o papel do Advogado de Defesa ou o da vítima, cuja função é outra (e essa função é defender os interesses do seu Constituinte – e constituinte não é o mesmo que cliente – estando os mesmas apenas vinculados a certos deveres e limites éticos que não podem, ou não devem, quebrar ou ultrapassar), cabe aos órgãos de polícia criminal recolher os elementos de prova disponíveis por forma a identificar a(s) vítima(s), a descobrir qual o exacto crime (ou crimes) praticado(s) e como o foi(foram), quem o(s) praticou e os motivos que determinaram essa conduta.
Para fazer isso, é inegável que importa esboçar uma série de hipóteses – todas as que a imaginação do investigador lhe permitirem conceber a partir dos indícios existentes.
Mas é indispensável que não sejam mais do que isso, meras hipóteses a ser confirmadas ou infirmadas com o que vier a ser apurado/adquirido com o desenvolvimento da investigação; como soi dizer-se, há que manter um espírito aberto e não cristalizar “certezas” antes de tempo (desde Leibnitz, ainda no século XVIII, que sabemos que todas as nossas certezas são meramente probabilísticas e não absolutas - liguem os motores de busca se por acaso nunca tiverem ouvido falar deste famoso matemático e filósofo alemão, ou vice versa, porque aqui a ordem é mesmo arbitrária; vão ver que a vida dele dava uma telenovela de grande audiência, melhor do que muitos desses ditos reality shows que de realidade nada têm).
Como é natural, os primeiros indícios – excepto nos casos de flagrante delito – são fracos e, às vezes, até contraditórios; por isso, todas as pistas devem ser explorados e todos os suspeitos devem ser investigados (ninguém, repito, ninguém está acima de toda a suspeita), sendo certo que um suspeito não é o agente do crime e não pode ser tratado como tal. Aliás, nem sequer o indiciado ou até o acusado o são – o condenado é-o na exacta medida em que, através do devido processo (due process of law) se criou suficiente convicção, ou dito de outro modo, uma certeza para além de qualquer dúvida razoável, de que foi essa pessoa que praticou a infracção, delito ou crime).
Ora, para que uma investigação possa desenvolver-se com profundidade – chame-se mal necessário ou outra coisa qualquer – é inevitável que alguns direitos das pessoas, dos cidadãos, sejam violados (a palavra é esta e não vale a pena usar sofismas ou, passe o vernáculo, paninhos quentes), nomeadamente, a sua liberdade e a sua privacidade
Mas este atropelo desses direitos – aqui está outra palavra que custa a dizer e a ouvir – só é legítimo se se limitar ao mínimo indispensável e só é tolerável se for secreto para terceiros.
Porque, como diz a sabedoria popular, as aparências iludem e nem tudo o que luz é ouro (e uma vez mais repito, a sabedoria popular é um saber estatístico que resulta da acumulação da experiência de gerações e gerações de seres humanos, alguns desses ditados são milenares, e como tal tem que ser respeitada – atenção, respeito não é obediência cega, mas só um idiota chapado se atreve a ignorá-la; pois não argumentamos nós, ou muitos de nós, quase todos os dias, com os resultados das sondagens e dos estudos de opinião?). Ou seja, os indícios podem ser realmente meras aparências ou coincidências e a pessoa em causa nada ter a ver com o delito praticado – ser um inocente. E nem sequer estou a ter em conta as fabricações, ciladas, embustes ou, deixem-me ser um pouco irónico, as cabalas, que, tal como as bruxas, que as há, há.
Todavia, a partir do momento em que essas intrusões excedem o que é necessário, tornam-se abusos, tornam-se crimes. E o mesmo acontece com a violação do segredo.
É assim que se passa nas Sociedades Civilizadas e é assim que se devia passar em todo o Planeta – não tenho medo que digam que tenho a mania que a chamada sociedade ocidental é superior às demais; para mim é mesmo superior e é bom que nesta Aldeia Global estimemos e nos orgulhemos desses ideais e princípios que nos custaram gerações inteiras de sangue suor e lágrimas e que estão corporizados no designado Estado Social de Direito e, acima de tudo, é imprescindível que, contra ventos, modas e marés, lutemos por eles aqui na nossa própria casa e no Mundo.
3. Como resulta do que venho expondo, para mim, segredo de justiça e presunção de inocência são conceitos completamente interligados, fazendo parte do núcleo duro dos elementos estruturantes da Comunidade.
Quem investiga, persegue, acusa e julga criminosos tem que ter alguma superioridade ética e moral sobre eles – tem que usar de algo que eles não têm, lealdade e lanheza de carácter e de comportamentos. Nos actos e não apenas nas palavras. Em suma, tem que ter princípios e agir em conformidade com eles.
Como já uma vez escrevi, o Código de Processo Penal e o sistema judiciário não podem ser a corporização do princípio que sustenta que para malandro, malandro e meio.
E estejam seguros que, ao contrário do que afirmam os securitários, uma sociedade civilizada não fica refém nem está indefesa perante o crime organizado, de que o terrorismo é apenas mais uma faceta – os traficantes de seres humanos e os que ganham com o tráfico de substâncias estupefacientes ou de armas são tão perversos, perigosos e nocivos como os bombistas suicidas e aqueles que os armam, apenas os efeitos dos seus crimes são menos visíveis. Ou, se calhar, apenas menos espectaculares.
O que nós não podemos é ser indiferentes ao que se passa à nossa volta, desinteressados e desatentos face aos outros membros da Comunidade e aos seus/nossos problemas e fechados na nossa vidinha e nas nossas coisinhas … em resumo, não podemos ser passivos, abúlicos, acríticos e amorfos, e ao invés temos que ser cidadãos inteiros, cuidadosos, atentos e interessados. E, infelizmente, também preocupados.
4. Mas uma outra deslealdade e perversidade está intrinsecamente ligada à violação do segredo de justiça. No Código de Processo Penal aprovado pelo Decreto-Lei n.º 16489, de 15 de Fevereiro de 1929, isto é, aprovado depois do Golpe de Estado de 28 de Maio de 1226 que deu início à construção do Estado Novo, a confissão desacompanhada de outros meios de prova era, mais não seja teoricamente, inaceitável.
Não sendo a mera confissão dos factos suficiente para obter a condenação do acusado, havia que procurar outros elementos de prova, em suma, havia que trabalhar (por isso as escutas eram usadas para procurar os flagrantes delitos – os casos em que, passe o plebeísmo, os agentes do crime são apanhados com a boca na botija).
As coisas mudaram muito – e algumas dessas mudanças vieram do mundo anglo-saxónico, particularmente dos Estados Unidos da América (que, com o seu natural pragmatismo e confrontados com a impossibilidade física de julgar todos aqueles que estavam acusados da prática de crimes, inventaram o plea bargaining, em que até a pena concreta a aplicar pode ser negociada).
Agora, como nunca dantes, é essencial levar o potencial agente do crime a confessar – já não tanto, como magistralmente exposto no magnífico romance de Fedor (ou Fyodor) Dostoievski “Crime e Castigo”, com o objectivo da redenção do delinquente, mas sim para, como se de uma vulgar canalização se tratasse, desentupir o sistema.
Não que o desentupimento de canos não tenha méritos – é óbvio que sim, mas ainda não encontrei nenhum romance, muito menos um com a beleza dos de Dostoievski, que tratasse desses assuntos. Falha minha, de certeza.
E, por isso, vale tudo para obter uma confissão, até mentir.
Ou explorar os efeitos da exposição de um suspeito nos meios de comunicação social, nomeadamente se ele estiver a ser detido, algemado e humilhado em público, preferencialmente em frente dos seus familiares e amigos, mesmo quando nunca antes havia sido convocado para depor ou se havia recusado a fazê-lo. É limpinho, diria o outro – outro que não eu. Ás vezes, a simples ameaça é suficiente. Para mim, isso tem um nome muito feio – chama-se, pura e simplesmente, tortura.
Habitualmente, a este tipo de condutas está também associada a ameaça da sujeição da pessoa em causa a prisão preventiva (que será acompanhada com campanhas de novas cirúrgicas violações do segredo de justiça que têm como efeito, seja o mesmo querido ou não, a destruição pública do carácter e da credibilidade do denunciado).
Estes comportamentos estão devidamente teorizados e constituem rotina em muitos países – segundo algumas associações de direitos cívicos, isso passa-se nos EUA, tendo esses métodos sido usados na chamada “Operação Mãos Limpas” em Itália (mas, quem sabe, se não estou, eu próprio, a colaborar numa qualquer mistificação ao reproduzir tais acusações); que cada um tire as suas conclusões.
Em todo o caso, tais atitudes são também, e no mínimo, uma ilegítima e monstruosa forma de pressão sobre os próprios Juízes, sendo para mim insuportável que os próprios membros da Corporação a que pertenço não sejam os primeiros a reconhecer a situação e, como é nossa obrigação, a denunciá-la e a combatê-la. Eu faço-o e continuarei a fazê-lo, até porque, para mim, existem indícios sérios que tais tácticas poderão estar a ser usadas para obter na praça pública condenações que não conseguem ser alcançadas nos julgamentos realizados nas salas de audiência dos Tribunais.
O que é verdadeiramente monstruoso e repugnante, por melhores que sejam e sejam eles quais forem, os objectivos sociais que possam ser alcançados com tais actos.
O mais puro dos fins fica irremediavelmente contaminado se for iníquo o meio usado para o alcançar. Com isso, o perseguidor torna-se igual ao infractor perseguido.
5. Mas e então, será que para os intervenientes no processo que não as polícias e o Ministério Público (segredo de justiça interno) não deverão existir regras próprias distintas daquelas que valem para os terceiros (segredo de justiça externo) ?
Naturalmente, as regras terão que ser distintas, mas, em minha opinião abolir totalmente o segredo de justiça será o maior favor que poderemos fazer a esses prevaricadores – verdadeiros criminosos que atentam contra a subsistência do Estado de Direito. Desse modo estaremos a legalizar/legitimar esses atentados à dignidade da pessoa humana (e à solidez do Estado de Direito), que deixariam de constituir, como actualmente o são, actos ilícitos. E, passando a ser actos legais, a consequência iria ser o agravamento dos males que tanto denunciamos.
Para usar a gíria futebolística, seria beneficiar o infractor – verdadeiramente, entregar o ouro ao bandido.
E existem soluções que em nada prejudicam a eficácia – a necessária eficácia – da investigação.
Mas isso é matéria da reforma do Código de Processo Penal. A seu tempo, escreverei (novamente) sobre isso.
Por agora, pretendi, tão só, reafirmar princípios. No próximo texto, se tiverem paciência para me ler, voltarei às concretas propostas da Unidade de Missão, mais exactamente, as que respeitam às várias violações da liberdade, da autodeterminação sexual de menores, da integridade física e da saúde (e outras formas de abuso, violência ou maus tratos) das pessoas físicas.
1 Comments:
Como fui militar e agente policial, achei que a disciplina seria um bem comum para a sociedade, principalmente quando encapuçada por uma legislação pouco cuidada. Assim e durante anos convivi e continuo a conviver com gente parca em cuidados respeitosos, prejudicando os outros. Como as nossas autoridades pouco capacidade têm para reagir, acontecem, por vezes, casos caricatos. O exemplo que se segue e que se passou comigo é bem o exemplo da fraca assimetria do dever de protecção aos mais cuidados. Após anos sob a ameaça do ruído da vizinhança e das constantes queixas às autoridades policiais e administrativas, sem resultado, escrevo apenas isto aos responsáveis deste país:-Serão responsáveis pelo que advier nas situações presentes. Não demorou a que alguém agisse contra a minha pessoa - se a policia ou os Tribunais. Sei que não me resolveram o problema do ruído nem a administração do condomínio, que continua, mas ao ser enviada uma força policial para me vasculhar a casa, com mandado de busca por um Meritíssimo, com acusação de falsificação de documentos e do crime de ameaças, não me livrei. Claro que não deu em nada. O prejuízo fora o ter ficado durante um ano no estado TIR e com o estatuto de arguido e sem um computador pessoal
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