Excursos e incursos no percurso da advocacia
(continuação da edição anterior)
6. Fugir da justiça e evitar os tribunais já não é um sussurro é um clamor da vox populi. A imagem da função do Juiz e da justiça está estragada e degrada-se dia-a-dia. O sistema judiciário funciona mal e a más horas. E por que é que não se faz nada para mudá-lo? E por que é que se continua, como em França (Denis Robert – La Justice ou le chaos) a acreditar na mentira do Estado que consiste em repetir até ao embrutecimento que a justiça é capaz, serena, credível?
Só que o papel do político é o de escutar a necessidade da justiça e de o satisfazer. Só que a questão situa-se no coração do pacto social, ou seja, situa-se no coração da política no sentido da vida da cidade, no coração da cidadania. Se os cidadãos estão descontentes com a administração da justiça, é todo o funcionamento social que está em riscos de ser afectado. A perda de autoridade da justiça num Estado acarreta de uma maneira difusa a perda de autoridade de todo o aparelho do Estado.Uma sociedade de direito e contratual, aliás, hiperjurisdicizada, necessita de uma justiça mais forte, mais eficaz e mais prestigiada.
A justiça não é uma instituição como as outras. É um serviço essencial, é o recurso da liberdade contra o poder, é a suprema instância de regulação dos conflitos. E nunca esqueçamos, recusando qualquer deriva para uma certa ideia de ordem, que a sociedade democrática é essencial e estruturalmente conflitual e que só nela se exprimem livremente as dissonâncias do mundo e das pessoas. E nós, advogados, somos os representantes qualificados nesses conflitos de direitos e de interesses.A justiça é a instituição mais simbólica do Estado e, sendo-o, a sua perda de credibilidade não afecta e humilha apenas os juízes, mas também todo o Estado e todos nós cidadãos e o respeito que os cidadãos se devem uns aos outros. E, quando os indivíduos não respeitam uma autoridade superior que se chama justiça, os grupos sociais também deixam de respeitá-la.
Ora, para que uma sociedade funcione é necessário uma autoridade diferente que represente a justiça e a quem os cidadãos reconheçam o mínimo de prestígio e capacidade. O poder simbólico da justiça permite a uma sociedade funcionar com simplesmente os sinais da autoridade. Se o sinal é fraco, decadente, a autoridade já não pode exercer-se senão com o recurso à força.Se o sinal e o símbolo da balança já não evocam nada para ninguém, então é necessário empunhar a espada. E quaisquer que sejam as, quantas vezes, execráveis, razões da força não pertencem elas ao mundo das estimáveis e desejáveis forças da razão.
Recentemente foi dado à estampa o grito de alarme, denominado o “Apelo de Genève”, subscrito por sete qualificados magistrados de vários países da Europa que decidiram dizer não ao estado em que vivemos, ao estado da nossa Administração da Justiça pela Europa fora e dentro.Dirigiram-no aos políticos em particular e à opinião pública em geral. Para que todos possam compreender que a justiça e o seu exercício são hoje a sorte, o jogo e o futuro das democracias europeias.Por isso, escreveu-se nesse «Appel de Genéve», que à sombra de uma Europa em construção visível, oficial e respeitável, esconde-se uma outra Europa mais discreta, menos confessável, uma Europa de sombra mas que as autoridades políticas se revelam incapazes de atacar por forma clara e eficaz.
Ora “desse exercício novo de justiça depende o futuro da democracia na Europa e a verdadeira garantia dos direitos do cidadão tem esse preço”.A única resposta é, antes de mais, de ordem cultural. O papel que se impõe, neste começo de século, é o da reconstrução da República a partir da base, refazendo os novos cidadãos dos novos tempos. É pela interiorização de um discurso, de um modo de racionalização político e jurídico e de práticas de civilidade enraizadas numa antiga e forte cultura que os indivíduos aprendem a inscrever-se na sua sociedade, a comunicar nela e até a resistir-lhe.
O que depende da educação e reforma das mentalidades mas também da capacidade do legislador e dos diferentes decisores em repudiar os mitos caducos. O que depende, enfim, da firmeza com a qual serão postos em obra os princípios da tradição republicana – a lei, a igualdade de direito, o respeito das formas jurídicas, o conflito, o laicismo, a responsabilidade, a sanção, a civilidade, a sacralização da vida privada, a separação das ordens – capazes de despertar em nós, com a alegria de viver, o nosso gosto e desejo imemoriais de liberdade. Pagamos hoje um preço caríssimo, que é o da desafectação da opinião face ao exercício da política.
Fez-se o inverso do que se deveria ter feito: favoreceu-se o consenso e o compromisso para evitar as alternâncias. Só que a consciência responsável só se desperta no conflito. E “é bom – como alertava Alain nos seus “Propos sur le bonheur” – ter um pouco de mal em viver e em não seguir um caminho inteiramente uno”.A democracia não é um regime, é uma convenção de uma fragilidade magnífica, magnífica. E ficamos condenados a nada compreendermos das tensões que rasgam as democracias contemporâneas se não recordamos que o sufrágio universal, ainda que corrigido pelo sistema representativo e por contra-poderes, já não é uma garantia suficiente, só por si, contra a tentação totalitária e contra a desordem civil: ele necessita de apoiar-se numa cultura e em usos e costumes sociais.
Tal como a expansão não dependente dos economistas, a salvaguarda das liberdades não é tributária dos professores de direito. O bom funcionamento de uma democracia é, antes de mais, uma questão de mentalidades. Afirmar que “ela é o pior de todos os regimes à excepção de todos os outros” significa que ela é o menos contraditório com a ideia que um homem livre faz da sua dignidade. E o mais fácil de ser adoptado com argumentos de razão. Nunca esqueçamos que foram precisos vinte e dois séculos, da Grécia antiga a Jean-Jacques Rousseau, para fazer ancorar nos espíritos a ideia de que a vontade da maioria não é outra coisa senão uma relação de forças. Cada um dos sistemas democráticos corresponde a um modelo, marcado por uma história, melhor dizendo, enquadrado por uma cultura.
É sempre possível fazer evoluir o povo mal informado para o povo melhor formado. E é tempo de reencontrar, sob o monstro gregário em gestação, a figura do cidadão. Ao preço de uma mudança de doutrina que não será simples de traduzir em actos nem de fazer aceitar. Mas que constitui a nossa oportunidade de nos adaptarmos ao mundo que chega sem perder a inteligência e, também e sobretudo, o gosto e o desejo da liberdade.A responsabilidade social do advogado não se esgota na temática do acesso ao direito e passa pelo esclarecimento da opinião pública sobre as questões que se vão pondo à justiça, como o segredo de justiça, sobre as relações entre a tutela da personalidade e o direito de informar, sobre a instituição de um regime de tratamento em público de casos judiciais, sobre o modelo de administração da justiça, sobre a defesa dos direitos, liberdades e garantias.
Os direitos humanos, para além dos avanços e recuos dos mecanismos destinados a efectivá-los, continuam a ser, invocando as palavras do poema de Jorge de Sena:Uma pequenina luz bruxuleante e muda como a exactidão como a firmezacomo a justiça.Apenas como elas.Mas brilha.Não na distância. Aqui.no meio de nós.Brilha.Não, não regressemos às utopias dos “condutores da história” ou das “vanguardas iluminadas” que dispensam a democracia, a soberania do povo legitimada pelo voto na eleição dos seus representantes, e a liberdade de dizer sim, de dizer não, de dizer não sei, não quero e até de não dizer nada.
Essa variedade plural de opções é, em democracia, o exercício da liberdade que, já no sábio e antigo dizer de Espinosa, é o fim do Estado. E o exercício livre desse voto não é, longe disso, um jogo formal e falacioso de cartas marcadas e falsificadas, nem à partida nem à chegada.Porque nisto de “liberdades” é também como nos gostos: quem não gosta demais, não gosta bastante.Porque a liberdade ganha, nestes dias de chumbo, mas também de esperança, densidades diferentes e assume projectos colectivos particularmente sugestivos. A liberdade não pode, por isso, ser vista exclusivamente pelo seu lado negativo, como resistência, como contestação, pois tem de ser valorada como um impulso de autenticidade, de criatividade, de cidadania, de ser livre de escolher, em democracia, e sobretudo através do sufrágio. Porque, não o esqueçamos nunca, o radical último da liberdade, qualquer que seja o ângulo donde o analisemos, está nesse pedaço de “nós” em que a escolha se realiza.
E, para aqueles que têm uma liberdade diminuída e apoucada, porque têm medo, têm fome, têm ignorância, é dever do Estado e dos cidadãos tudo fazer para que os cidadãos o sejam sem medo, sem fome e sem ignorância. Não esqueçamos que a defesa da liberdade profunda e da democracia, vem manifestada nos múltiplos enriquecimentos que a história lhe vai dando, sendo tarefa imorredoira de todos os dias. Somos tanto mais livres quanto mais liberdade encontramos nos outros. Por isso promover a liberdade do outro é o “meu” mais profundo acto de liberdade.Ora numa sociedade concreta há vários projectos possíveis, toda a sociedade moderna é uma caldeira de projectos, muitos deles nem virtualmente de acordo sobre certas e últimas coordenadas de fundo que dão corpo e sentido à ideia de establishment.
Antes de tudo, há que entender que o projecto é um feixe de fins, de meios e de tácticas, que correspondem, cada um deles, a uma das várias missões que a concreta societas coordena e realiza: éticos, políticos, económicos, higiénicos, de saúde, de cultura, de lazer, de desporto, de segurança, de defesa, etc, etc..Já menos evidente ou, talvez antes, menos consciente é que os valores do projecto não são apenas os recolhidos ou estabelecidos pelo bloco social no poder. Pela simples razão de que ninguém manda sozinho, de que ninguém reina sobre os mortos, como Aquiles dizia, há sempre um subterrâneo compromisso entre dominante e dominado; o que não determina felizmente a resignação deste, mas obriga aquele (na sua sede de perpetuação) a calculadamente transigir com alguns valores do segundo.
Valores muitas vezes reclamados por movimentos sociais e expressos naquilo que Laurent Joffrin chamou de utopias realistas para este séc. XXI (NO Nov.99/Jan. 2000).Não falo de uma China democrática, de cidades sem automóveis, de um capitalismo tornado moral, da fome erradicada do mundo, das religiões convertidas à tolerância, de uma justiça sem fronteiras mas de algumas esperanças e de possíveis vitórias. Devemos reabilitar a utopia. Segundo Eric Hobsbawn, o séc. XX (do assassinato de Sarajevo – 1914 à queda do Muro 1989) foi o da utopia em actos, ou seja, o dos bárbaros modernos, desse casal infernal do fascismo-comunismo. Mataram-se só num século mais seres humanos do que nos vinte séculos precedentes. À oposição revolução-conservadorismo que marcou o mundo do séc. XX, substituiu-se depois uma oposição entre um capitalismo sem freio e o movimento daqueles que lhe resistem. Esse neo-liberalismo está em vias de absorver o planeta inteiro. Chamam-lhe mundialização, globalização.
Vejamos algumas dessas movimentações:
1) As organizações não governamentais (ONG) como uma internacional dos cidadãos, fundada uma sociedade civil internacional baseada no controlo do cidadão (Greenpeace, Médicos sem Fronteiras, Amnistia Internacional);
2) A exigência de um salário mínimo mundial. Depois da abolição do trabalho infantil e do reconhecimento do sindicalismo, mundializar tudo, globalizar a luta, graças à luta por uma intersindical mundial através da Internet!...
3) A equidade sobre a etiqueta. Novo contrato: o produtor compromete-se a respeitar as normas sociais estabelecidas pela Organização Internacional do Trabalho; o consumidor solidário aceita pagar o justo preço pelos produtos oriundos de uma proveniência “equitativa”.
4) A verdade cotada pela bolsa. Os investidores não se determinam somente em função de critérios de rentabilidade financeira e passam as empresas pelo crivo moral, social e ecológico. Os fundos de pensão éticos.
5) Empréstimos sem fronteiras. O microcrédito à grande pobreza. O Banco Mundial de crédito chamado banco dos pobres. O crédito como um direito do homem. Espécie de uma economia de fraternidade. É preferível ensinar um pobre a pescar do que lhe dar um peixe. Melhor, mais se lhe devem dar os meios de comprar uma cana de pesca.
6) Accionistas: os pequenos fazem a lei. São o povo, o conselho de administração, o governo. Os accionistas agrupados nos fundos de investimento.
7) Medicamentos para os excluídos. A excepção sanitária é uma vitória dos ONG; os países do Sal atacados pelas doenças infecciosas obtêm o direito de produzir os medicamentos de que necessitam.
8) O homem à medida. O progresso espectacular da medicina, da genética e da informática tornam possível a aparição de um novo homem: o homem em kit. Cada enfermidade ou doença ainda fatal terá a sua cura em 2010, graças aos enxertos, às próteses electrónicas e outras vacinas genéticas.
9) A escola dos 7 aos 97 anos. A formação permanente, contínua, continuada ao longo da vida. Aproveitar a baixa demográfica.
10) A genética dos mitos do homem geneticamente perfeito e do bébé com zero defeito. A possibilidade de atribuir poderes a uma Comissão Nacional de Ética para controlar esta revolução.
11) A justiça sem fronteiras. O Tribunal Internacional de Justiça. Os criminosos contra a humanidade.
12) Paridade. A feminização da vida política. Madame Europa.
13) O fim da fome.
14) As prisões: o último prisioneiro. Fim do Estado-Penitência. Menos prisão para mais segurança.
15) Circulação: uma cidade sem automóveis. Desenvolvimento dos transportes públicos, o co-transporte generalizado, interdições drásticas, o peão redescobre a sua cidade.
16) A inteligência artificial: a máquina que pensa. Hiper-ordenador.
17) O grande “bond” democrático: A China como jovem democracia.
18) Religiões: adeus às pessoas santas. A tolerância como virtude moderna. Já não se mata em nome de Deus.
19) Fronteiras: abolição e livre circulação de país em país.
20) A Câmara-cérebro. Graças aos microprocessadores biológicos podem aplicar-se receptores nas células de qualquer ser vivo e projectar imagens e filmes directamente sobre a córnea.
21) Teatro: a cena vai pela estrada. Os novos peregrinos do espectáculo são nómadas. Cabanas itinerantes, tendas, praças de vilas ou de aldeias, servem-lhes de cena. Com eles o teatro do séc. XXI escolheu as vias da utopia humana, tão humana... Por fim, saliente-se que a sociedade, mais que uma caldeira de projectos, é uma caldeira de valores: os valores estão em permanente ebulição, há valores e contra-valores que são crisálidas de valores, e essa febre, longe de ser patológica, é fisiológica numa sociedade viva.
E SÓ A DEMOCRACIA PERMITE ESSA DIALÉCTICA. Sendo certo que só se confrontam, em escrutínio, os valores assumidos pelos diversos projectos com as referidas aberturas.Essa progressiva penetração da história pelos valores da pessoa, em democracia, a que Maritain chamou “a conquista horizontal da liberdade”, é pelo que me parece, repito, mais importante surpreender o encontro da equidade com a sociedade, através de uma como que abertura em longitude do projecto, de um devir do projecto, ao encontro do homem, que é a sua extrema floração.
E então se cumprirá a profecia de Dante: “hominis ad hominem proportio” ou nos seus imortais tercetos “o homem aportará “a aquele bem” “che non há fine, e sè com sè misura”, o homem aportará “a aquele bem que não tem fim e a si consigo se mede”.Não se trata de um slogan, de retórica, de marketing, mas, sim, de realismo político básico.O desta “Divina Commedia” que é a da nossa aventura humana e que pelo imortal Dante nos foi legada, a benefício do nosso bem e do nosso caminho sob a “estrela do norte” de todo o mundo e ninguém.
Vou terminar com as últimas estrofes daquele que, para mim, é um dos mais belos poemas do séc. XX: Ítaca de Cavafy:Terás sempre Itaca no teu espírito,que lá chegar é o teu destino último.Mas não te apresses nunca na viagem.É melhor que ela dure muitos anos,que sejas velho já ao ancorar na ilha,rico do que foi teu pelo caminho,e sem esperar que Ítaca te dê riquezas.Ítaca deu-te essa viagem esplêndida.Sem Ítaca, não terias partido.Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te.Por pobre que a descubras, Ítaca não te traíu.Sábio como és agora, senhor de tanta experiência, terás compreendido o sentido de Ítaca.No Porto e na Faculdade de Direito da Universidade Católica aos dias 5 do mês de Maio de 2006.
6. Fugir da justiça e evitar os tribunais já não é um sussurro é um clamor da vox populi. A imagem da função do Juiz e da justiça está estragada e degrada-se dia-a-dia. O sistema judiciário funciona mal e a más horas. E por que é que não se faz nada para mudá-lo? E por que é que se continua, como em França (Denis Robert – La Justice ou le chaos) a acreditar na mentira do Estado que consiste em repetir até ao embrutecimento que a justiça é capaz, serena, credível?
Só que o papel do político é o de escutar a necessidade da justiça e de o satisfazer. Só que a questão situa-se no coração do pacto social, ou seja, situa-se no coração da política no sentido da vida da cidade, no coração da cidadania. Se os cidadãos estão descontentes com a administração da justiça, é todo o funcionamento social que está em riscos de ser afectado. A perda de autoridade da justiça num Estado acarreta de uma maneira difusa a perda de autoridade de todo o aparelho do Estado.Uma sociedade de direito e contratual, aliás, hiperjurisdicizada, necessita de uma justiça mais forte, mais eficaz e mais prestigiada.
A justiça não é uma instituição como as outras. É um serviço essencial, é o recurso da liberdade contra o poder, é a suprema instância de regulação dos conflitos. E nunca esqueçamos, recusando qualquer deriva para uma certa ideia de ordem, que a sociedade democrática é essencial e estruturalmente conflitual e que só nela se exprimem livremente as dissonâncias do mundo e das pessoas. E nós, advogados, somos os representantes qualificados nesses conflitos de direitos e de interesses.A justiça é a instituição mais simbólica do Estado e, sendo-o, a sua perda de credibilidade não afecta e humilha apenas os juízes, mas também todo o Estado e todos nós cidadãos e o respeito que os cidadãos se devem uns aos outros. E, quando os indivíduos não respeitam uma autoridade superior que se chama justiça, os grupos sociais também deixam de respeitá-la.
Ora, para que uma sociedade funcione é necessário uma autoridade diferente que represente a justiça e a quem os cidadãos reconheçam o mínimo de prestígio e capacidade. O poder simbólico da justiça permite a uma sociedade funcionar com simplesmente os sinais da autoridade. Se o sinal é fraco, decadente, a autoridade já não pode exercer-se senão com o recurso à força.Se o sinal e o símbolo da balança já não evocam nada para ninguém, então é necessário empunhar a espada. E quaisquer que sejam as, quantas vezes, execráveis, razões da força não pertencem elas ao mundo das estimáveis e desejáveis forças da razão.
Recentemente foi dado à estampa o grito de alarme, denominado o “Apelo de Genève”, subscrito por sete qualificados magistrados de vários países da Europa que decidiram dizer não ao estado em que vivemos, ao estado da nossa Administração da Justiça pela Europa fora e dentro.Dirigiram-no aos políticos em particular e à opinião pública em geral. Para que todos possam compreender que a justiça e o seu exercício são hoje a sorte, o jogo e o futuro das democracias europeias.Por isso, escreveu-se nesse «Appel de Genéve», que à sombra de uma Europa em construção visível, oficial e respeitável, esconde-se uma outra Europa mais discreta, menos confessável, uma Europa de sombra mas que as autoridades políticas se revelam incapazes de atacar por forma clara e eficaz.
Ora “desse exercício novo de justiça depende o futuro da democracia na Europa e a verdadeira garantia dos direitos do cidadão tem esse preço”.A única resposta é, antes de mais, de ordem cultural. O papel que se impõe, neste começo de século, é o da reconstrução da República a partir da base, refazendo os novos cidadãos dos novos tempos. É pela interiorização de um discurso, de um modo de racionalização político e jurídico e de práticas de civilidade enraizadas numa antiga e forte cultura que os indivíduos aprendem a inscrever-se na sua sociedade, a comunicar nela e até a resistir-lhe.
O que depende da educação e reforma das mentalidades mas também da capacidade do legislador e dos diferentes decisores em repudiar os mitos caducos. O que depende, enfim, da firmeza com a qual serão postos em obra os princípios da tradição republicana – a lei, a igualdade de direito, o respeito das formas jurídicas, o conflito, o laicismo, a responsabilidade, a sanção, a civilidade, a sacralização da vida privada, a separação das ordens – capazes de despertar em nós, com a alegria de viver, o nosso gosto e desejo imemoriais de liberdade. Pagamos hoje um preço caríssimo, que é o da desafectação da opinião face ao exercício da política.
Fez-se o inverso do que se deveria ter feito: favoreceu-se o consenso e o compromisso para evitar as alternâncias. Só que a consciência responsável só se desperta no conflito. E “é bom – como alertava Alain nos seus “Propos sur le bonheur” – ter um pouco de mal em viver e em não seguir um caminho inteiramente uno”.A democracia não é um regime, é uma convenção de uma fragilidade magnífica, magnífica. E ficamos condenados a nada compreendermos das tensões que rasgam as democracias contemporâneas se não recordamos que o sufrágio universal, ainda que corrigido pelo sistema representativo e por contra-poderes, já não é uma garantia suficiente, só por si, contra a tentação totalitária e contra a desordem civil: ele necessita de apoiar-se numa cultura e em usos e costumes sociais.
Tal como a expansão não dependente dos economistas, a salvaguarda das liberdades não é tributária dos professores de direito. O bom funcionamento de uma democracia é, antes de mais, uma questão de mentalidades. Afirmar que “ela é o pior de todos os regimes à excepção de todos os outros” significa que ela é o menos contraditório com a ideia que um homem livre faz da sua dignidade. E o mais fácil de ser adoptado com argumentos de razão. Nunca esqueçamos que foram precisos vinte e dois séculos, da Grécia antiga a Jean-Jacques Rousseau, para fazer ancorar nos espíritos a ideia de que a vontade da maioria não é outra coisa senão uma relação de forças. Cada um dos sistemas democráticos corresponde a um modelo, marcado por uma história, melhor dizendo, enquadrado por uma cultura.
É sempre possível fazer evoluir o povo mal informado para o povo melhor formado. E é tempo de reencontrar, sob o monstro gregário em gestação, a figura do cidadão. Ao preço de uma mudança de doutrina que não será simples de traduzir em actos nem de fazer aceitar. Mas que constitui a nossa oportunidade de nos adaptarmos ao mundo que chega sem perder a inteligência e, também e sobretudo, o gosto e o desejo da liberdade.A responsabilidade social do advogado não se esgota na temática do acesso ao direito e passa pelo esclarecimento da opinião pública sobre as questões que se vão pondo à justiça, como o segredo de justiça, sobre as relações entre a tutela da personalidade e o direito de informar, sobre a instituição de um regime de tratamento em público de casos judiciais, sobre o modelo de administração da justiça, sobre a defesa dos direitos, liberdades e garantias.
Os direitos humanos, para além dos avanços e recuos dos mecanismos destinados a efectivá-los, continuam a ser, invocando as palavras do poema de Jorge de Sena:Uma pequenina luz bruxuleante e muda como a exactidão como a firmezacomo a justiça.Apenas como elas.Mas brilha.Não na distância. Aqui.no meio de nós.Brilha.Não, não regressemos às utopias dos “condutores da história” ou das “vanguardas iluminadas” que dispensam a democracia, a soberania do povo legitimada pelo voto na eleição dos seus representantes, e a liberdade de dizer sim, de dizer não, de dizer não sei, não quero e até de não dizer nada.
Essa variedade plural de opções é, em democracia, o exercício da liberdade que, já no sábio e antigo dizer de Espinosa, é o fim do Estado. E o exercício livre desse voto não é, longe disso, um jogo formal e falacioso de cartas marcadas e falsificadas, nem à partida nem à chegada.Porque nisto de “liberdades” é também como nos gostos: quem não gosta demais, não gosta bastante.Porque a liberdade ganha, nestes dias de chumbo, mas também de esperança, densidades diferentes e assume projectos colectivos particularmente sugestivos. A liberdade não pode, por isso, ser vista exclusivamente pelo seu lado negativo, como resistência, como contestação, pois tem de ser valorada como um impulso de autenticidade, de criatividade, de cidadania, de ser livre de escolher, em democracia, e sobretudo através do sufrágio. Porque, não o esqueçamos nunca, o radical último da liberdade, qualquer que seja o ângulo donde o analisemos, está nesse pedaço de “nós” em que a escolha se realiza.
E, para aqueles que têm uma liberdade diminuída e apoucada, porque têm medo, têm fome, têm ignorância, é dever do Estado e dos cidadãos tudo fazer para que os cidadãos o sejam sem medo, sem fome e sem ignorância. Não esqueçamos que a defesa da liberdade profunda e da democracia, vem manifestada nos múltiplos enriquecimentos que a história lhe vai dando, sendo tarefa imorredoira de todos os dias. Somos tanto mais livres quanto mais liberdade encontramos nos outros. Por isso promover a liberdade do outro é o “meu” mais profundo acto de liberdade.Ora numa sociedade concreta há vários projectos possíveis, toda a sociedade moderna é uma caldeira de projectos, muitos deles nem virtualmente de acordo sobre certas e últimas coordenadas de fundo que dão corpo e sentido à ideia de establishment.
Antes de tudo, há que entender que o projecto é um feixe de fins, de meios e de tácticas, que correspondem, cada um deles, a uma das várias missões que a concreta societas coordena e realiza: éticos, políticos, económicos, higiénicos, de saúde, de cultura, de lazer, de desporto, de segurança, de defesa, etc, etc..Já menos evidente ou, talvez antes, menos consciente é que os valores do projecto não são apenas os recolhidos ou estabelecidos pelo bloco social no poder. Pela simples razão de que ninguém manda sozinho, de que ninguém reina sobre os mortos, como Aquiles dizia, há sempre um subterrâneo compromisso entre dominante e dominado; o que não determina felizmente a resignação deste, mas obriga aquele (na sua sede de perpetuação) a calculadamente transigir com alguns valores do segundo.
Valores muitas vezes reclamados por movimentos sociais e expressos naquilo que Laurent Joffrin chamou de utopias realistas para este séc. XXI (NO Nov.99/Jan. 2000).Não falo de uma China democrática, de cidades sem automóveis, de um capitalismo tornado moral, da fome erradicada do mundo, das religiões convertidas à tolerância, de uma justiça sem fronteiras mas de algumas esperanças e de possíveis vitórias. Devemos reabilitar a utopia. Segundo Eric Hobsbawn, o séc. XX (do assassinato de Sarajevo – 1914 à queda do Muro 1989) foi o da utopia em actos, ou seja, o dos bárbaros modernos, desse casal infernal do fascismo-comunismo. Mataram-se só num século mais seres humanos do que nos vinte séculos precedentes. À oposição revolução-conservadorismo que marcou o mundo do séc. XX, substituiu-se depois uma oposição entre um capitalismo sem freio e o movimento daqueles que lhe resistem. Esse neo-liberalismo está em vias de absorver o planeta inteiro. Chamam-lhe mundialização, globalização.
Vejamos algumas dessas movimentações:
1) As organizações não governamentais (ONG) como uma internacional dos cidadãos, fundada uma sociedade civil internacional baseada no controlo do cidadão (Greenpeace, Médicos sem Fronteiras, Amnistia Internacional);
2) A exigência de um salário mínimo mundial. Depois da abolição do trabalho infantil e do reconhecimento do sindicalismo, mundializar tudo, globalizar a luta, graças à luta por uma intersindical mundial através da Internet!...
3) A equidade sobre a etiqueta. Novo contrato: o produtor compromete-se a respeitar as normas sociais estabelecidas pela Organização Internacional do Trabalho; o consumidor solidário aceita pagar o justo preço pelos produtos oriundos de uma proveniência “equitativa”.
4) A verdade cotada pela bolsa. Os investidores não se determinam somente em função de critérios de rentabilidade financeira e passam as empresas pelo crivo moral, social e ecológico. Os fundos de pensão éticos.
5) Empréstimos sem fronteiras. O microcrédito à grande pobreza. O Banco Mundial de crédito chamado banco dos pobres. O crédito como um direito do homem. Espécie de uma economia de fraternidade. É preferível ensinar um pobre a pescar do que lhe dar um peixe. Melhor, mais se lhe devem dar os meios de comprar uma cana de pesca.
6) Accionistas: os pequenos fazem a lei. São o povo, o conselho de administração, o governo. Os accionistas agrupados nos fundos de investimento.
7) Medicamentos para os excluídos. A excepção sanitária é uma vitória dos ONG; os países do Sal atacados pelas doenças infecciosas obtêm o direito de produzir os medicamentos de que necessitam.
8) O homem à medida. O progresso espectacular da medicina, da genética e da informática tornam possível a aparição de um novo homem: o homem em kit. Cada enfermidade ou doença ainda fatal terá a sua cura em 2010, graças aos enxertos, às próteses electrónicas e outras vacinas genéticas.
9) A escola dos 7 aos 97 anos. A formação permanente, contínua, continuada ao longo da vida. Aproveitar a baixa demográfica.
10) A genética dos mitos do homem geneticamente perfeito e do bébé com zero defeito. A possibilidade de atribuir poderes a uma Comissão Nacional de Ética para controlar esta revolução.
11) A justiça sem fronteiras. O Tribunal Internacional de Justiça. Os criminosos contra a humanidade.
12) Paridade. A feminização da vida política. Madame Europa.
13) O fim da fome.
14) As prisões: o último prisioneiro. Fim do Estado-Penitência. Menos prisão para mais segurança.
15) Circulação: uma cidade sem automóveis. Desenvolvimento dos transportes públicos, o co-transporte generalizado, interdições drásticas, o peão redescobre a sua cidade.
16) A inteligência artificial: a máquina que pensa. Hiper-ordenador.
17) O grande “bond” democrático: A China como jovem democracia.
18) Religiões: adeus às pessoas santas. A tolerância como virtude moderna. Já não se mata em nome de Deus.
19) Fronteiras: abolição e livre circulação de país em país.
20) A Câmara-cérebro. Graças aos microprocessadores biológicos podem aplicar-se receptores nas células de qualquer ser vivo e projectar imagens e filmes directamente sobre a córnea.
21) Teatro: a cena vai pela estrada. Os novos peregrinos do espectáculo são nómadas. Cabanas itinerantes, tendas, praças de vilas ou de aldeias, servem-lhes de cena. Com eles o teatro do séc. XXI escolheu as vias da utopia humana, tão humana... Por fim, saliente-se que a sociedade, mais que uma caldeira de projectos, é uma caldeira de valores: os valores estão em permanente ebulição, há valores e contra-valores que são crisálidas de valores, e essa febre, longe de ser patológica, é fisiológica numa sociedade viva.
E SÓ A DEMOCRACIA PERMITE ESSA DIALÉCTICA. Sendo certo que só se confrontam, em escrutínio, os valores assumidos pelos diversos projectos com as referidas aberturas.Essa progressiva penetração da história pelos valores da pessoa, em democracia, a que Maritain chamou “a conquista horizontal da liberdade”, é pelo que me parece, repito, mais importante surpreender o encontro da equidade com a sociedade, através de uma como que abertura em longitude do projecto, de um devir do projecto, ao encontro do homem, que é a sua extrema floração.
E então se cumprirá a profecia de Dante: “hominis ad hominem proportio” ou nos seus imortais tercetos “o homem aportará “a aquele bem” “che non há fine, e sè com sè misura”, o homem aportará “a aquele bem que não tem fim e a si consigo se mede”.Não se trata de um slogan, de retórica, de marketing, mas, sim, de realismo político básico.O desta “Divina Commedia” que é a da nossa aventura humana e que pelo imortal Dante nos foi legada, a benefício do nosso bem e do nosso caminho sob a “estrela do norte” de todo o mundo e ninguém.
Vou terminar com as últimas estrofes daquele que, para mim, é um dos mais belos poemas do séc. XX: Ítaca de Cavafy:Terás sempre Itaca no teu espírito,que lá chegar é o teu destino último.Mas não te apresses nunca na viagem.É melhor que ela dure muitos anos,que sejas velho já ao ancorar na ilha,rico do que foi teu pelo caminho,e sem esperar que Ítaca te dê riquezas.Ítaca deu-te essa viagem esplêndida.Sem Ítaca, não terias partido.Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te.Por pobre que a descubras, Ítaca não te traíu.Sábio como és agora, senhor de tanta experiência, terás compreendido o sentido de Ítaca.No Porto e na Faculdade de Direito da Universidade Católica aos dias 5 do mês de Maio de 2006.
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Quem se devia preocupar não está interessado. Aqueles que se sentem prejudicados e injustiçados são penalisados. A título de exemplo está um cidadão que em três vezes foi convocado para estar presente em Tribunal e nessas três vezes o julgamento fora adiado.
Tentou formalisar o seu prejuizo perante o provedor, levou logo com o juíz, aplicando-lhe uma multa
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