Monday, May 08, 2006

Memórias Oficiosas

Processos Históricos: Processo de Soalhães (Marco de Canaveses)

Em processo de querela com o n.º 41/33, da comarca do Marco de Canaveses, iniciado em 27 de Fevereiro de 1933, julgaram-se quatro indivíduos por co-autoria do crime de homicídio voluntário.
Foram condenados, por acórdão de 30 de Maio de 1934 do Tribunal Colectivo daquela Comarca, na pena de 6 anos de prisão maior celular, seguida de degredo por 10, ou alternativa fixa de degredo por 20 anos, em possessão de 1ª classe. Mais se condenaram a pagar a indemnização de 6.000$00 aos filhos da vítima, Arminda de Jesus. A pena foi confirmada por acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 13 de Maio de 1934.

Motivação: um cunhado amigo da vítima e várias outras pessoas juntaram-se em casa de uma mulher possuída por duas almas, uma boa e outra má, como sapientemente diagnosticara uma mulher de virtude de Vila Nova de Gaia.
O referido cunhado da vítima havia beneficiado, pouco antes, de dois empréstimos concedidos por esta, um de 100$00 e outro de 90$00, sem juros e sem prazo de pagamento, não tendo ainda sido devolvido o dinheiro aquando dos acontecimentos ocorridos na noite de Sábado, 25, para 26 daquele mês de Fevereiro.
Propuseram-se aqueles orar, com base no Livro de S. Cipriano, comprado, pouco tempo antes, em Penafiel, por 17 mil reis. Já haviam feito o mesmo na noite anterior, para esconjuro da alma má. Em certa altura, a possuída disse para um casal circunstante se deitar no chão, se acaso pretendiam salvar-se, o que eles fizeram.
Chegando, nesse momento, a vítima Arminda também se deitou, começando esta, desde logo, em altos gritos, de mãos erguidas para o ar e a bater palmas, dizendo logo a possessa para a porem na rua e lhe baterem, pois, obviamente, trazia o diabo dentro dela. Foi prontamente obedecida e agredida à paulada e sacholada.
Como, apesar disso, se não calava, mesmo já com ossos quebrados, a mesma instigadora mandou que a queimassem. Juntaram, então, caruma de pinheiro e deitam-lhe persistentemente o fogo, acabando este por pegar com a utilização de um isqueiro.
À medida que a caruma ardia e a vítima esturrava, os circunstantes foram ajeitando, com diligente cuidado, o combustível. Consumada a queima, perante o estático torresmo, retiraram-se para casa da mandante, recolhidos em esperançosa oração, até alta madrugada, para que a vítima ressuscitasse (sancta simplicitas!). Como tal não se verificou, certamente já inquietos, os algozes foram para suas casas onde se mantiveram até que foram presos.

O drama foi objecto de um filme e de uma peça teatral, "O Crime da aldeia Velha", esta da autoria de Bernardo Santareno.

Porto, 2.02.1999.Pereira da Graça.
ver in

Sunday, May 07, 2006

Big Brother Laboral

"Mais Pobres"
"Uma empresa farmacêutica com sede no Cacém, com 177 trabalhadores, 'colocou câmaras de filmar/vídeo em todo o armazém, as quais foram colocadas em ângulo de forma a abranger todo o espaço onde os trabalhadores exercem as suas funções, incidindo sobre os mesmos, de tal modo que as tarefas que estes exercem estão a ser permanentemente filmadas e gravadas'. Além disso, passaram a existir monitores que visualizam todos os locais de trabalho e os trabalhadores passaram a estar permanentemente sob vigia e observação do operador das câmaras.
Refira-se que a Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) tinha autorizado a empresa em causa a proceder à recolha de imagens e som com a finalidade de segurança das instalações, equipamentos, medicamentos e outros produtos de venda em farmácia, permitindo a instalação de 89 câmaras de vídeo que se distribuíam pelo armazém de produtos farmacêuticos, corredores e recepção, áreas administrativas, sala de servers, sala de tesouraria, sala UPS, corredor externo entre a área administrativa e o refeitório.
A razão de ser desta instalação de videovigilância e da sua autorização pela CNPD era, assim, a 'segurança dos bens', ou melhor, visava pôr cobro aos furtos de medicamentos e demais produtos da empresa praticados pelas pessoas que tinham acesso à instalações em causa.O Sindicato dos Trabalhadores de Química, Farmacêutica e Gás do Centro Sul e Ilhas intentou uma acção judicial pedindo que a empresa farmacêutica fosse condenada a retirar as máquinas de filmar dos locais de trabalho onde os empregados exerciam as suas funções cuja actividade era assim permanentemente vigiada, com violação dos seus direitos de imagem, consagrados na Constituiçao e na lei ordinária.
Na 1.ª instância, o sindicato perdeu a acção, 'por se ter entendido que a utilização dos meios de vigilância utilizados era lícita, nas circunstâncias do caso, por ter como finalidade a protecção e segurança de bens e não o controlo do desempenho profissional dos trabalhadores'. Recorreu, então, o sindicato para o Tribunal da Relação de Lisboa.Este tribunal considerou que, 'embora possa questionar-se o número e a intensidade da videovigilância exercida sobre os trabalhadores', a sua utilização era lícita, confirmando a decisão da 1.ª instância.
E, assim, o sindicato perdeu novamente a acção, e as câmaras de vídeo, que, orientadas para os postos de trabalho, permanentemente observavam e filmavam todos e cada um dos gestos de todos e cada um dos trabalhadores, ali permaneceram.E se já estivesse em vigor a alteração legislativa que 'vem a caminho', a 'questão' morreria aqui. Na verdade, a chamada regra da 'dupla conforme' que, 'a bem da Justiça' e para mal dos portugueses, vai ser uma realidade, determina que uma decisão da 1.ª instância que seja confirmada pelo Tribunal da Relação, apesar de absurda, já não pode ser objecto de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
O empobrecimento da nossa paisagem jurídica e cultural que tal medida representará é incomensurável.É certo que ainda não se conhece o texto aprovado em Conselho de Ministros e que, nos comunicados governamentais, é referida a existência de excepções a esta 'castração jurídica e judicial', mas o 'golpe' vai, seguramente, ser profundo...
E nem se diga que se pretende combater a morosidade da justiça, 'desbloqueando' o Supremo, já que não é nos tribunais superiores que os processos se 'arrastam', mas sim nos tribunais de 1.ª instância, como qualquer prático do Direito o sabe.Mas, voltando à videovigilância: porque a lei ainda o permite, o sindicato recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), já que os trabalhadores que representava não podiam fazer absolutamente nada que não fosse visto pelos seguranças e pela administração. Um olhar, uma troca de palavras, um 'palavrão', um momento de cansaço, uma lágrima, um sorriso, um beijo, furtivo ou não, passariam a ser 'propriedade' da entidade patronal...
No STJ, os juízes-conselheiros Fernandes Cadilha, Mário Pereira e Maria Laura Leonardo, tendo em conta os textos legais, consideraram que 'a instalação de sistemas de vídeovigilância nos locais de trabalho envolve a restrição do direito de reserva da vida privada e apenas poderá mostrar-se justificada quando for necessária à prossecução de interesses legítimos e dentro dos limites definidos pelo princípio da proporcionalidade'.
Ora, a protecção da segurança das pessoas e bens, enquanto justificação da videovigilância, tem em vista a prevenção da prática de crimes, pelo que a sua utilização só se justifica em locais (públicos ou privados) onde haja 'um razoável risco de ocorrência de delitos contra as pessoas ou contra o património'. E, lembrou o STJ, recorre-se às câmaras de vídeo porque 'esses locais podem ser frequentados por pessoas anónimas sem possibilidade de qualquer prévio controlo de identificação'.
Ora, neste caso, considerou o STJ, 'não estamos perante uma vigilância genérica de natureza essencialmente preventiva, dirigida a qualquer pessoa que acidental ou esporadicamente interfira no espaço de observação; mas perante vigilância individualmente dirigida, que elege todos e cada um dos trabalhadores como potenciais suspeitos de prática de infracções criminais e que, desse modo, passam a constituir o objecto exclusivo e privilegiado de vigilância'. Isto é, em vez de recorrer a averiguações internas, processos disciplinares ou a queixas-crime pelos eventuais furtos, a entidade patronal passara a vigiar permanentemente os 'suspeitos', isto é, todos e cada um dos seus empregados.
Assim, para o STJ, a videovigilância instalada passara a ser 'uma típica medida de polícia, que apenas poderia ser implementada dentro das competências específicas das autoridades policiais, por períodos de tempo determinados'. Na verdade, uma 'intolerável intromissão na reserva da vida privada, na sua vertente de direito à imagem' dos trabalhadores, e, por isso mesmo, o STJ, no passado dia 8 de Fevereiro, revogou a decisão do Tribunal da Relação e ordenou a retirada da câmaras de vídeo. Desta vez, ainda não havia a 'dupla conforme', e o Big Brother viu-se obrigado a recuar..." (Francisco Teixeira da Mota - Público, 07/05/2006)
Retirado de

Saturday, May 06, 2006

Um caso edificante

Artigo publicado no dia 2 de Maio no jornal "Público" pelo jornalista José Vítor Malheiros, cuja leitura se aconselha


Um caso edificante

A voz da minha colega da secção de pessoal que sai do telefone mostra algum constrangimento. Acaba de receber um ofício do tribunal, informa-me, ordenando uma penhora sobre o meu ordenado para cobrança de uma dívida não paga, pela qual acabo de ser condenado em julgamento.

Trata-se obviamente de um engano. Não fui condenado em nenhum tribunal e não tenho dívidas a não ser os meus empréstimos ao banco. A minha consciência está tranquilíssima quando subo para ver o ofício.

À cabeça do documento vem o nome do meu suposto credor: uma loja de electrodomésticos onde, de facto, fiz uma compra há doze anos, que paguei com uma série de cheques pré-datados, a forma de prestações corrente na altura.

É verdade que tinha havido algum problema, porque, mais de um ano após a compra, recebi uma carta de um escritório de advogados intimando-me a pagar uma mensalidade, aparentemente em falta. Respondi aos advogados dizendo que pensava estar tudo pago mas dispondo-me a pagar caso existisse alguma dívida e pedi dados: a loja perdeu algum dos cheques? Houve algum cheque não pago pelo banco? Envio a carta, não recebo resposta e acabo por varrer o caso da memória.

Agora, doze anos depois, aparece esta penhora. Contacto com o meu advogado a quem peço para deslindar a história e a quem transmito a minha vontade de processar a loja, o Estado e os tribunais para repor a justiça. Depois da surpresa inicial a minha reacção é de fúria: então um cidadão pode ser processado, levado a tribunal e condenado sem ser informado de nada? Sem ter possibilidade de se defender de uma acusação sem fundamento? É isto o Estado de direito?

A averiguação é breve: eu terei sido “devidamente” notificado pelo tribunal do processo mas acontece que … mudei de casa. E foi tudo enviado para a morada antiga.

Mas não é proibido mudar de casa! Como é possível que não me tenham localizado, se actualizei imediatamente todos os meus documentos? É que a polícia que faz estas intimações, quando não encontra o destinatário em casa, pergunta aos vizinhos se sabem onde ele está … e fica-se por aí.

E o sujeito pode acabar por ser julgado sem saber. Falo com o tribunal e a PSP, que confirmam o procedimento.

E não perguntam a morada às Finanças, que tudo sabem? À Segurança Social? À DGV? Ao Arquivo de Identificação? Não consultam a lista telefónica? “Não. Costumamos perguntar aos vizinhos.”

“E como é que conseguiram notificar-me da penhora mas não me conseguiram notificar de que ia ser julgado? Por que é que não me contactaram para o meu emprego?” “As penhoras vão para a entidade patronal, mas as notificações não vão.”

Posso fazer um processo ao Estado, mas as probabilidades de êxito são remotas, pois é possível que a polícia e tribunais tenham “cumprido os procedimentos”. E não se pode fazer um processo ao Estado e aos tribunais por estupidez? Acabo por decidir escrever esta crónica para ilustração alheira.

Morais da história (há várias):

- A primeira é que o leitor pode ter sido julgado e condenado por homicídio na semana passada sem que o brioso sistema judicial se tenha dado ao trabalho de o informar.

- A segunda é que todos os crimes prescrevem, incluindo casos de homicídio… menos os nossos.

- A terceira é que o Estado não olha a gastos (policiais, notificações, documentação, advogados, julgamento) mesmo que se trate de resolver um problema inexistente – no caso vertente, uma dívida que, a existir, o devedor se dispunha a pagar imediatamente.

- A quarta é que a reforma do Estado e dos tribunais nem sempre exige grandes meios mas necessita de algo que pode não estar disponível nas estruturas a reformar: um mínimo de inteligência e de sentido cívico.

Sentença de um Juiz


No dia cinco de outubro
Do ano ainda fluente
Em Carmo da Cachoeira
Terra de boa gente
Ocorreu um fato inédito
Que me deixou descontente.
O jovem Alceu da Costa

Conhecido por "Rolinha"
Aproveitando a madrugada
Resolveu sair da linha
Subtraindo de outrem
Duas saborosas galinhas.
Apanhando um saco plástico
Que ali mesmo encontrou

O agente muito esperto
Escondeu o que furtou
Deixando o local do crime
Da maneira como entrou.
O senhor Gabriel Osório
Homem de muito tato

Notando que havia sido
A vítima do grave ato
Procurou a autoridade
Para relatar-lhe o fato.
Ante a notícia do crime
A polícia diligente

Tomou as dores de Osório
E formou seu contingente
Um cabo e dois soldados
E quem sabe até um tenente.
Assim é que o aparato
Da Polícia Militar

Atendendo a ordem expressa
Do Delegado titular
Não pensou em outra coisa
Senão em capturar.
E depois de algum trabalho
O larápio foi encontrado

Num bar foi capturado
Não esboçou reação
Sendo conduzido então
À frente do Delegado.
Perguntado pelo furto
Que havia cometido

Respondeu Alceu da Costa
Bastante extrovertido
Desde quando furto é crime
Neste Brasil de bandidos?
Ante tão forte argumento
Calou-se o delegado

Mas por dever do seu cargo
O flagrante foi lavrado
Recolhendo à cadeia
Aquele pobre coitado.
E hoje passado um mês

De ocorrida a prisão
Chega-me às mãos o inquérito
Que me parte o coração
Solto ou deixo preso
Esse mísero ladrão?

Soltá-lo é decisão
Que a nossa lei refuta
Pois todos sabem que a lei
É prá pobre, preto e puta...
Por isso peço a Deus
Que norteie minha conduta.

É muito justa a lição
Do pai destas Alterosas.
Não deve ficar na prisão
Quem furtou duas penosas,
Se lá também não estão presos
Pessoas bem mais charmosas.

Afinal não é tão grave
Aquilo que Alceu fez
Pois nunca foi do governo
Nem seqüestrou o Martinez
E muito menos do gás
Participou alguma vez.

Desta forma é que concedo
A esse homem da simplória
Com base no CPP
Liberdade provisória
Para que volte para casa
E passe a viver na glória.

Se virar homem honesto
E sair dessa sua trilha
Permaneça em Cachoeira
Ao lado de sua família
Devendo, se ao contrário,
Mudar-se para Brasília!!!